A Mão que Afaga é a Mesma que Apedreja*

Leandro Pellizzoni
Leandro Pellizzoni
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3 min readJan 24, 2023

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Mestre Nena no cortejo nas ruas de Juazeiro do Norte (Foto: Leandro Pellizzoni)

Mestre Nena é um senhor com uma certa idade avançada, sempre viveu da agricultura mesmo depois da aposentadoria. Não consegue deixar a roça. Trabalhador braçal na cidade de Juazeiro do Norte, no cariri cearense.

Desde a infância se dedica a atividades culturais. A mais marcante é a brincadeira do bacamarte, que teve início com a volta dos soldados da guerra do Paraguai que, felizes por chegar em seus lares, davam tiros com pólvora seca, dançavam e cantavam celebrando a vida.

Em 2009, cria seu próprio grupo como Mestre, o Bacamarteiros da Paz, dando continuidade a arte com seus amigos e familiares. Em 2019 sua casa virou um Museu Orgânico onde recebe visitantes ávidos por conhecer um pouco da sua vida, tomar um cafezinho e se admirar da sabedoria desse caboclo da Chapada do Araripe.

Pessoa de conversa séria mas sempre com um grande sorriso no rosto e aquele brilho nos olhos de quem já tem alguma história para compartilhar. A palma de suas mãos tem as marcas que o tempo, o mundo e a vida desenham. Depois de uma trajetória marcante na cultura da região, em dezembro de 2022 recebe o título de Tesouro Vivo da Cultura, outorgado pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará.

Esse mesmo estado, através da polícia militar, efetuou uma ação violenta na casa de um de seus filhos e contra a sua pessoa onde, além de golpes com um pedaço de madeira, os policiais dispararam arma de fogo em sua direção. A sessão de violência acabou e nada foi comprovado. Nem armas, nem drogas. Nada foi encontrado que justificasse a abordagem, a operação.

Essa cultura da violência, que ganhou espaço e adeptos no Brasil nos últimos anos, está presente nessa polícia que bate primeiro, que atira primeiro, que grita primeiro, antes de mais nada. Essa polícia está presente em muitos lugares como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, Fortaleza e também em Juazeiro do Norte.

Assim como na vida, o Estado tem vários lados. Há o Estado que massacra, que mata, que segrega, que maltrata. Há o Estado que acolhe, media, oferece, oportuniza, empodera. Tudo isso existe junto. Temos agora um longo caminho de pacificação. O Estado que promove a cultura, a arte, a vida, a pessoa, os direitos humanos, representado nessa questão pela Secretaria de cultura e em tantas e tantas pessoas que dedicam a vida para os valores humanos, meus cumprimentos e meu reconhecimento.

A vida segue e os aprendizados com as situações devem ficar presentes para que não cometamos os mesmos erros.

Minha solidariedade com Mestre Nena e sua família. O sentimento é que façamos um mundo mais justo e amoroso para que a flor da cultura e da arte floresça cada vez mais.

Mestre Nena a vontade em sua casa, hoje Museu Orgânico Mestre Nena (Foto: Leandro Pellizzoni)

*trecho de um poema de Augusto dos Anjos

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