Digital e Analógico, tudo se tornou real

Leandro Pellizzoni
Leandro Pellizzoni
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6 min readMay 16, 2023

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(pexel.com)

Marcelo Fioroni, 52, já fazia terapia antes da pandemia de Covid-19. O motivo que o levou ao consultório psicológico foi um outro “surto” que tomou conta da sociedade brasileira, a polarização política. Segundo a reportagem do jornal Folha de São Paulo que o entrevistou, as constantes discussões e a sensação de solidão e angústia geradas pelo convívio com o pai de 82 anos, bolsonarista.

Situações semelhantes aconteceram em muitas famílias brasileiras, círculos de amizades e comunidades em todo país. Começou a se instalar durante o processo do golpe político-parlamentar contra a presidenta Dilma Roussef, em 2016, se agravou nas eleições de 2018, e se manteve até as eleições de 2022. E ainda não dá sinais que tenha sido resolvido. O que aconteceu foi que as pessoas inventaram formas para driblar as discussões e atritos para manter os vínculos familiares e de amizades.

Mas essa polarização é um fenômeno atual? Antes das eleições de 2018 ela nunca existiu? Ou essa divisão de opiniões sempre esteve presente na sociedade brasileira, tão marcada por desigualdades e segregações?

O que acompanhamos nos últimos anos no Brasil foi o encadeamento de fatos que foram conduzindo a sociedade para o ambiente tóxico que vimos e vivemos mais recentemente, o descrédito dos conhecimentos (imprensa, escola, universidade, ciência) e o estreitamento da visão de mundo. Mas antes de falar que a sociedade está polarizada quero colocar algumas considerações sobre polarização.

No site Politize!, um texto assinado por Luiz Andreassa, ele coloca que “Na política, o significado estrito de polarização é simplesmente a divisão de uma sociedade em dois polos a respeito de um determinado tema.” Até aí vejo uma realidade. É possível notar facilmente dois grupos, ou grupões, fechados em suas esferas de opiniões sem disposição ao diálogo.

Isso no âmbito da sociedade em geral, nós comedores de feijão, e nos âmbitos dos parlamentares? Pouca ou quase nenhuma disposição ao diálogo, ao consenso, ao ponto do meio.

O que quero discutir também é um ponto de vista que vi inúmeras vezes em conversas com populares, com profissionais de imprensa e vi também retratado em páginas da grande imprensa: de que Lula e Bolsonaro são duas faces da mesma moeda, que são extremos de uma mesma coisa, associando as imagens desses políticos como sendo comunismo e nazismo polos de um mesmo totalitarismo.

Discordo dessa visão pois parto do princípio que a esfera política representada por Lula e o PT é muito diferente da esfera política representada por Bolsonaro e o sem número de partidos por onde ele esteve.

O Partido dos Trabalhadores e seu expoente máximo, Lula, sempre jogaram de acordo com as regras do jogo democrático, republicano, cumprindo os ritos parlamentares e jurídicos colocados pela Constituição. Não precisamos ir muito longe, na sua gestação e nascimento, em plena ditadura militar, quando foi criado para combatê-la e apoiar os trabalhadores urbanos desamparados. Durante o processo que ficou conhecido pelo impeachment da presidenta Dilma, que muitos juristas e especialistas defendem que não houve crime de responsabilidade, ela e o PT deixaram o poder sem pregar a luta armada.

Também outro momento sensível e arbitrário, a prisão de Lula. O Partido dos Trabalhadores e suas lideranças não reagiram com violência, não estimularam que os seus simpatizantes usassem da violência e o próprio Lula pregava justamente o contrário, justiça e diálogo. Durante o período em que ficou preso em Curitiba e após a soltura não se estimulou a luta armada nem nenhum tipo de golpe. Sempre dentro das regras, dentro do Estado Democrático de Direito.

Já para Jair Bolsonaro e seus inúmeros partidos e simpatizantes, o sentimento de “tudo pode” sempre esteve presente. Desde a campanha das eleições de 2018 o então presidenciável já falava em golpe. Discursava alegando que se não ganhasse as eleições era porque as urnas tinham sido fraudadas. Durante o mandato incitou a violência contra minorias, contra professores, contra a imprensa, contra as universidades, contra a ciência, contra os profissionais de saúde, IBAMA, FUNAI, INPE, STF, enfim, tudo e todos que representavam alguma forma de pacto civilizatório virava alvo do tão famigerado gabinete do ódio, esquema de milícia digital formado um grupo de assessores de Jair Bolsonaro que atuavam no Palácio do Planalto e foram coordenados pelo ex-presidente e por Carlos Bolsonaro. O grupo atuava na gestão das redes sociais do ex-presidente e foi formado durante a campanha para a Eleição presidencial no Brasil em 2018, continuando a atuar até o fim de seu mandato (Wikipédia).

Também após as eleições de 2022, em que saiu derrotado, continuou a pregar e incitar a violência através de seus comandados já que ficou quase três meses sem dar declarações públicas, e através da sua milícia digital. Vimos o fechamento de estradas por todo o Brasil, acampamento em frente a unidades das forças armadas onde se pediam que elas “agissem em nome da defesa do país”. Tudo isso culminou nos atos violentos e criminosos em Brasília nos dias 12/12/2022 e 08/01/2023.

Então, na esfera política não estamos lidando com polos da mesma coisa quando tratamos de Lula e Bolsonaro. Mas na esfera ideológica sim lidamos com uma polarização pois vemos os que defendem a democracia, o Estado Democrático de Direito, o pacto civilizatório, as regras republicanas, e há os que lutam contra isso tudo, pelo golpe de Estado, pela violência, pela ditadura.

E os efeitos desses discursos na grande imprensa?

Aí sim acredito que anos de divulgação dessas ideias distorcidas, ou até mau intencionadas, gerou uma polarização na sociedade que viveu e sofreu consequências diversas desse ambiente de ódio e violência, muitas vezes letais.

No âmbito das pautas de costumes, as discussões foram mais quentes pois eram as que o gabinete do ódio mais estimulava através das redes sociais com notícias falsas, incorretas ou desinformação. Falou-se tanto da “mamadeira de piroca” e o “kit gay” mas nunca se provou sua existência, pelo contrário, foi provado que era uma desinformação (feita com o objetivo de distorcer sua finalidade).

Muitas pessoas se sentiram atraídas pelos discursos de desinformação pois foram bombardeadas por notícias com viés ideológico por alguns anos. Retomando as eleições de 2014 quando o candidato perdedor, Aécio Neves (PSDB) disse em seu discurso após a divulgação do resultado, que “deixaria o país ingovernável” , e assim se fez. As elites se movimentaram, inicialmente inflando uma manifestação pontual por melhorias no transporte público de São Paulo a transformando no que chamamos hoje de Jornadas de Junho, que culminou em uma campanha de propaganda contra o presidenta Dilma e o PT, acabando com o mandado através de um golpe jurídico-parlamentar.

Mais notícias bombardeadas por anos com a Lava Jato que perseguiu lideranças do PT e culminou, como ja citamos aqui, na prisão de Lula em 2018. Todos esses anos de uma campanha midiática-jurídica-parlamentar teve efeitos nefastos na sociedade. Dividindo a população em os que acreditavam na demonização de Lula, do PT e todos que estavam a sua volta, e no endeusamento do então juiz Sérgio Moro e depois em Jair Bolsonaro.

Assim o ambiente foi ficando cada vez mais tóxico que levou a muitas famílias a selarem um pacto de não se falar em política para que as relações não chegassem a extremos. Esse clima também afetou diversos outros âmbitos da sociedade. Um exemplo, religiões tiveram rachas imensos por terem alas que defendiam um lado ou outro. Escolas tiveram problemas para lidar com adolescentes que levavam para o ambiente escolar as raivas e frustrações domésticas.

Outro fator que serviu de catalisador nessa situação foi que a pandemia de Covid-19 amplificou o convívio e relações digitais e a exposição a esse tipo de comunicação, campo fértil para os discursos de ódio, racistas e violentos. Nota-se o crescimento alarmante de células neonazistas no Brasil.

Há luz no fim do túnel?

Sim, há. Estamos aprendendo a lidar com as nuances que as redes sociais tem em nossas visões de mundo. Iniciativas importantes brotam e se fortalecem para trazer informação e formação para as diversas populações a respeito das armadilhas das tecnologias e ensinando a usa-la de forma mais equilibrada e inspiradora para uma vida melhor.

Recentemente a discussão sobre a regulamentação das plataformas online, como Google, Meta, Twitter, demonstra que a nossa sociedade caminha para um amadurecimento sobre esse tema tão sensível e tão presente na nossa vida atual. As diversas legislações que se debruçam sobre direito digital, proteção de dados, relações comerciais e sociais nas plataformas online estão em aperfeiçoamento e ganham mecanismos de regulação e regulamentação.

E os pequenos passos também são importantes como amadurecer a consciência de procurar mais fontes de informação ou pelo menos desconfiar de notícias que nos chegam pelos diversos aplicativos que temos em nossos celulares. Lidar com a ansiedade para manusear os celulares e outros dispositivos eletrônicos também é um assunto que cada vez mais especialistas tem estudado e compartilhado estratégias.

Enquanto tudo isso acontece silenciei as notificações do meu celular, não falo de política com minha mãe e nem com alguns “amigos” e sigo procurando aprender como lidar com tudo isso na minha profissão de jornalista.

Leandro Pellizzoni, jornalista

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